Filosofia de boutique
Rosa Pena
Vendi minha casa de veraneio de porteira fechada. Tudo o que lá estava, lá ficou. Meu caseiro e meu cachorro, portanto, estavam incluídos. Ouvi de uma de minhas primas:
— Desumana, fria, materialista! Que maldade vender um cão de dez anos!
Não argumentei mais do que já tinha argumentado antes. Que o cachorro, nos últimos dois anos, havia sido visitado por nós, seus "donos"?!, apenas duas vezes, que o caseiro tinha virado seu tutor e que o dog assumidamente adorou ser dele, reelegeu com prazer seu senhor, aquele que lhe dava mais que comida e vacina. Catava seus carrapatos no banho, passeava ao sol, protegia-o do barulho dos fogos, afagava seus pêlos, tudo com muito carinho, coisa que nós havíamos substituído por um cartão de crédito, que pagava a ração, o veterinário, o empregado, a nossa culpa!? E ainda nos sentíamos bacanas, por tanto desprendimento pelo animal. Eu sei que ela sabia disso muitíssimo bem, não adiantaria eu repetir, pois ela só ouve a si própria.
Minha prima sempre considerou-se a rainha das virtudes e é extremamente obediente a toda e qualquer convenção, pois teima que ambas andam de mãos dadas. Vender uma casa com um cachorro velho quebra qualquer regra que classifica um indivíduo como bom, foge totalmente ao convencional para qualquer pessoa, que dirá para ela, que até para sonhar, estipulou normas. Ainda me lembro de nós adolescentes, papeando no imaginário. Ela jamais sonhou em voz alta com o nosso professor de ginástica, peladão, dando-lhe uns amassos ao som de Pink Floyd. A boa norma manda que meninas decentes se preservem até em devaneios. O máximo que se permitiu, foi imaginá-lo de terno, dançando alguma música do Rei Roberto Carlos.
São tantas emoções que ela não viveu!
Ouvi seu discurso formal perante a família. Ela adora uma platéia, mostrar que é bem sábia, uma Sócrates de saias, suspirando com o olhar distante à espera de olhares aprovadores. Determinou que generosidade está estipulada em algum código. Será que é no de Da Vinci e eu nem percebi, tamanha a confusão da história?
Ela tinha aproximadamente onze anos quando, por toda força e lei, quis um daqueles "ratinhos brancos", um infeliz hamster. O bichinho foi comprado junto com a gaiola especial, que vem com aquela neurótica rodinha, rações diversas, uma lista de procedimentos de como cuidar dele. Ganhou o nome de Fernando, em homenagem ao nosso tio. Preferi apelidá-lo de Nando, um garoto bem gostosinho lá da rua, quase tão gostoso quanto o professor de ginástica nu nos meus delírios anormais.
Na primeira semana, diariamente, foram servidas várias "refeições”, a água trocada de hora em hora. A gaiola recebia forragem nova e Nandinho era olhado com imenso carinho. Ninguém podia chegar perto, para não irritá-lo. Sempre achei que a neurótica rodinha já era mais que o suficiente. Políticos deveriam ter rodinhas nos gabinetes. Quem sabe não é essa a solução para o mensalão? Enquanto rodam, não roubam. Organizações Tabajaras baixaram aqui.
Aos poucos, o zelo foi sendo substituído pelo esquecimento. Passou o momento de amar? A preocupação com o fofinho "lindo de morrer" ficou para dias alternados. Não demorou nadinha e a responsabilidade do trato diário do principezinho virou da mamãe. Um dia ele morreu de forma natural — ou foi suicídio, para se livrar da neurótica rodinha?
Eu se fosse ele, juro que teria me matado!
Custou uma semana para que ela percebesse que o fofíssimo não estava mais entre nós, provavelmente estava girando no espaço, condicionado à neurótica circulante. Começou a chorar, fitando o vazio, com seu olhar bondoso e seu jeans novo. Entre soluços e respiração profunda (pensadores inalam muito ar) afirmou melancólica:
— Vida injusta! Perdi meu amigo estupidamente.
Ouvi titia, ao longe, gritar:
— Você não perde aquilo que abandona, apenas pode ser que não ache mais.
Meu antigo cachorro? Vai indo maravilhosamente bem com seu verdadeiro dono, aquele que não o ama por estar em voga.
LIVRO UI!
Enviado por Rosa Pena em 23/07/2006